Francisco Martins Rodrigues sobre Manuel Domingues
Um texto longo, mas que vale bem os minutos que leva a ler. É de 1997, mas só hoje o conheci. Contém algumas imprecisões, que resultam de o autor não conhecer o processo que correu na PJ aquando do crime de que foi vítima Manuel Domingues. Ainda assim, é muito interessante particularmente pela desmontagem arrasadora que FMR faz dos documentos emitidos pelo PCP após o crime, que procuravam incriminar MD.
Aqui fica:
Manuel
Domingues, espião titista?
por Francisco Martins
Rodrigues
Fonte: https://franciscomartinsrodrigues.wordpress.com/2017/04/28/manueldominguesespiaotitista/
(Elementos de história do PCP e da resistência
antifascista)
Passado quase meio
século, muito pouco se sabe acerca da execução sumária do dirigente do PCP
Manuel Domingues, acusado de estar ao serviço da PIDE. Talvez o clima da
“guerra fria” dê pistas para a solução do mistério. Em 5 de Maio de 1951, a imprensa
noticiava o aparecimento num pinhal de Belas, nos arredores de Lisboa, do
cadáver dum homem, assassinado a tiro. Após alguns dias de especulações em
torno do “misterioso crime de Belas”, fez-se silêncio total sobre o assunto;
percebeu-se depois porquê – a PIDE identificara o cadáver e tomara o assunto
em mãos.
UM SUPER-ESPIÃO
0 morto era, como veio a
saber-se, Manuel Domingues, dirigente do PCP. E o silêncio do partido dava a
entender que a responsabilidade do crime não cabia desta vez à polícia política.
Foi preciso passar um ano para que, numa reunião do Comité Central (1), o membro
do Secretariado “Gomes” (2), num informe sobre “Vigilância revolucionária”, se
referisse à “expulsão” de Manuel Domingues, classificando-o como “espião e
provocador” e atribuindo-lhe a principal responsabilidade pela onda de prisões
que quase desmantelara o partido nos anos anteriores. Sobre a execução em si,
nem uma palavra – nunca foi norma do PCP reivindicar actos dessa natureza ,
mas ninguém teve dúvida de que Domingues fora abatido a tiro por ordem da
direcção do partido. Finalmente, meses depois, num folheto editado pelo
Secretariado do PCP, intitulado Lutemos contra os espiões e provocadores, foi
desenvolvida a “acta de acusação” contra Domingues. Ele teria estado ao serviço
da polícia fascista, infiltrado no aparelho clandestino desde, pelo menos,
1937, ano em que regressou clandestinamente de Espanha e, “inexplicavelmente”,
foram presos todos os outros militantes entrados em seguida, e que ele
conhecia. Chamado à direcção do partido, teria entregue uma tipografia à
polícia. Durante a guerra, em França, teria sido libertado pelos nazis dum
campo de internamento para continuar a sua missão tenebrosa; muito
provavelmente, teria passado ao serviço dos americanos. Como isto era ignorado
devido às descontinuidades na actividade da direcção causadas pelas prisões,
Domingues pudera guindar-se no pós-guerra a altas responsabilidades no comité
central. O cume e fim da sua carreira chegara em 1949, com a denúncia à PIDE de
todo o Secretariado do CC e tipografia do Avante, proeza que acabara por o
desmascarar. Dum cinismo e de uma frieza fora do comum, oferecia-se para
desempenhar as tarefas perigosas a fim de saber sempre mais e trair mais
camaradas. Por vezes, relatava ter encontrado casualmente na rua pides e outros
inimigos do partido, os quais contudo não o prendiam nem o denunciavam… Parecia
mesmo ter prazer em semear indícios incriminatórios contra si próprio e
perguntava com ar ingénuo se não pareceria estranho todos serem presos à sua
volta e só ele escapar… Enfim, um autêntico super-espião, sem termo de comparação
com os outros casos de provocação e traição que o folheto historiava.
DEDUÇÕES NÃO PROVADAS
Este rol de acusações é
contudo de uma fragilidade espantosa. Nem uma só prova firme é citada. Tudo se
baseia no facto de serem por ele conhecidas as instalações que a PIDE ia
assaltando; mas se outros as conheciam, porque não considerá-los igualmente
suspeitos? E porque não admitir que os desastres se devessem ao trabalho de
vigilância da PIDE, a erros conspirativos, etc.? Em 1961, por exemplo, os
membros do Secretariado do CC viriam a ser presos numa operação policial
simultânea em locais diversos e, que se saiba, nunca esse desastre foi
atribuído a uma denúncia de alto nível. Passemos em revista o fundamento das
acusações: Domingues era provocador porque em 1938 colaborara no Secretariado
com Vasco de Carvalho, Cansado Gonçalves e Armando de Magalhães, “elementos
policiais e provocadores, escorraçados do partido” – os quais, contudo, nessa
época eram dirigentes do partido, de pleno direito (aliás, mais tarde foi-lhes
retirada a classificação de provocadores). Também nesse ano, tratara com um
enfermeiro do Aljube da fuga de Pável, mas durante a viagem dos três para
França, “o enfermeiro afirmou que um dos dois (Domingues ou Pável) estava ao
serviço da polícia”. E uma simples afirmação dum empregado da PIDE bastava para
incriminar dois militantes? De outra vez, assegurou a um membro do Secretariado
não ser suspeita uma mulher vista nas imediações de uma tipografia clandestina,
mulher que “nesse mesmo dia à tarde tomou novamente o mesmo meio de transporte
que ele”. Concludente, de facto! Ainda de outra vez, quando do assalto a uma
tipografia, contou ter escapado à justa à prisão por ter sido avisado por uns
vizinhos. Só podia ser artimanha de provocador! Domingues “sabia que um
camarada do Secretariado ia a determinado local para realizar uma tarefa muito
importante. Pois quando esse camarada tomou um meio de transporte nesse local,
ouviu que falavam no seu nome, o que era muito de estranhar. Mais tarde veio a
saber-se que uma das pessoas presentes nesse meio de transporte era da PIDE”.
Mas então porque é que esse elemento da PIDE não tentou prender o dito
camarada? E assim por aí fora. Domingues comentara, a propósito de um indivíduo
que roubara o partido: “O que ele precisava era de um tiro na cabeça” – mas
quantos militantes não diriam o mesmo em circunstâncias semelhantes? Tomara a
defesa dum elemento estrangeiro sobre quem recaíam fortes suspeitas de
provocação, “porque receava que se descobrissem as suas ligações internacionais
com elementos provocadores” – mas ao defendê-lo não estava precisamente a
chamar as suspeitas sobre si próprio? Ao ver acumularem-se as suspeitas à sua
volta, teria contactado militantes para tentar arranjar um emprego – mas não
era este um comportamento inverosímil da parte dum espião profissional com uma
dúzia de anos de carreira? Mostrava-se nervoso e abatido ao verse alvo das
suspeitas dos seus camaradas? Era “porque temia ser desmascarado a todo o
momento.” Isto sem contar que Domingues era “vaidoso e mentiroso” e em jovem
fazia “vida de café, prostituição e noitadas”… A impressão que se colhe da
leitura deste libelo que se pretende esmagador é que a quantidade de acusações
serviu para tentar colmatar a sua falta de credibilidade. Se a direcção do PCP
tivesse realmente provas da traição de Domingues não teria amontoado “provas”
tão pouco convincentes, que mais parecem uma colecção de indícios e suposições,
recolhidos já depois da sua execução, junto de militantes alarmados, predispostos
a confirmar a tese já estabelecida pelo Secretariado. De resto, é inevitável a
pergunta feita na altura por alguns que o tinham conhecido de perto: como é que
um militante que semeava à sua volta um tal rasto de prisões, um elemento cuja
“baixa moral” dera origem a ser por duas vezes criticado no Militante (4),
pudera subir a tão grandes responsabilidades e manter-se nelas? Não estaria o
Secretariado a arranjar um bode expiatório para falhas conspirativas, se calhar
a verdadeira origem da série de prisões? Não se podendo descartar a hipótese de
Domingues ter sido preso em qualquer altura e se ter posto ao serviço da PIDE,
o quadro que ressalta da atropelada lista de acusações do Secretariado é muito
mais o de um militante cansado, desmoralizado pelos seus próprios erros, pelo
descalabro do partido e pelas suspeitas que sente existirem a seu respeito, que
quer sair da clandestinidade, voltar à vida legal, obter um emprego, escapar à
PIDE e aos seus camaradas. Manuel Domingues pode ter estado ao serviço da PIDE;
mas o PCP não apresentou até hoje qualquer prova convincente nesse sentido.
ESTRANHO SILÊNCIO
Facto surpreendente, a
partir de 1954 as publicações do PCP tornam-se silenciosas a respeito dum caso
que, a ser confirmado, teria o valor dum alerta permanente aos militantes
comunistas, a todos os antifascistas. Numa busca a informes a reuniões de
direcção, artigos e folhetos dedicados ao tema de defesa conspirativa (5) não
encontrei mais nenhuma referência ao “espião” Manuel Domingues. Como se tal
nunca tivesse acontecido. Tem que se convir que é estranho. Mais. Álvaro Cunhal
mostrou-se, pelo menos em duas ocasiões, extremamente reservado quanto ao
assunto. Em 1958, no forte de Peniche, declarou a Joaquim Carreira (6), que o
inquiria acerca da morte de Domingues, que, por na altura já estar preso, o
assunto não lhe passara pelas mãos e nada podia adiantar. Que Cunhal nada
tivesse a ver com o processo é óbvio, uma vez que na época se encontrava sob
rigoroso isolamento na Penitenciária de Lisboa; já parece menos crível que não
tivesse recebido posteriormente no forte de Peniche nenhuma informação sobre um
caso de tal gravidade. A resposta dada a Carreira parece indicar alguma reserva
em adoptar a tese oficial do Secretariado de que Domingues fosse um espião. De
resto, essa reserva foi por ele claramente manifestada, ainda no forte de
Peniche, no ano seguinte, num círculo restrito de militantes, em conversa a que
eu próprio assisti: custavalhe a crer que Manuel Domingues tivesse sido um
provocador. Assim, sem mais. Conhecido o rigor de regra no partido, que exigia
a cada militante o acordo expresso com as decisões da direcção, este desabafo
de Cunhal perante camaradas menos responsáveis é significativo. Somos levados a
pensar que, não tendo vivido o clima de pânico e suspeição de 195052 por se
encontrar na prisão, Cunhal encarava com cepticismo as conclusões do
Secretariado: talvez o conhecimento que tinha de Domingues não quadrasse com a
imagem que dele era dada, dum espião consumado. Já depois do 25 de Abril,
apesar do acesso que sobretudo o PCP conseguiu aos arquivos da PIDE, o enigma
continuou por esclarecer. Informes de congressos, artigos de história do
partido e da repressão ignoram pura e simplesmente o caso Manuel Domingues.
Única excepção, que eu saiba, uma brevíssima referência num texto de José
Magro: “Apareceu morto um aventureiro e ex-funcionário do Partido”…(7) . E
também esta menção aparentemente casual serve o objectivo de apagar o caso
Domingues: chamando-lhe simplesmente “aventureiro” dá-se a conhecer aos
membros do partido, não oficialmente e só nas entrelinhas, que Domingues, afinal,
não era espião mas que também não merece reabilitação porque não era boa rês…
Tudo parece pois indicar que a direcção do PCP já não sabe o que fazer com as
acusações de 1952 mas também não quer evocar as circunstâncias que a teriam
levado a matar um militante por engano.
UMA VIDA AGITADA
Manuel Domingues, o
camarada Luís, antigo operário da Marinha Grande, tivera papel activo no
levantamento de 18 de Janeiro de 1934, ao lado de Manuel Esteves de Carvalho,
José Gregório e outros. Pelo relevo ganho naquela jornada e pelo seu espírito
lutador, foi enviado para a União Soviética com Gregório, tendo ambos
frequentado um curso de marxismo-leninismo em Moscovo, destinado a prepará-los
ideologicamente para futuros cargos dirigentes (significativamente, o folheto
de 1952, acerca deste período da sua vida, diz apenas que “fugiu para o
estrangeiro”). Depois de ter desempenhado tarefas não especificadas em Espanha
durante a guerra civil, veio para Portugal, onde fez parte durante alguns meses
do Secretariado central do partido (em 1938). A experiência não foi boa; a
situação organizativa do partido era caótica e Domingues foi de novo enviado em
missão para o estrangeiro. Preso em França durante a guerra mundial e internado
num campo de concentração, ter-se-ia evadido (segundo a sua versão), voltando
clandestinamente a Portugal em fins de 1944. Do que teria sido a sua vida nesse
intervalo de tempo nada se sabe, ou, pelo menos, nada foi divulgado pela
direcção do PCP mas é-nos dito que veio “devidamente credenciado por um
Partido irmão.” (8) Em 1945, com o rápido alargamento da influência do partido,
Domingues passa a integrar o Comité Central e é cooptado para o Bureau Político
do CC, organismo de existência efémera mas que então se tentava projectar como
verdadeira direcção permanente do partido. Aí enfileira, ao lado de Cunhal,
Guedes, Militão, como um dos principais dirigentes comunistas da época. Que não
é uma escolha ocasional revela-o o facto de, no ano seguinte, o IV Congresso
do partido o ter confirmado como membro do Comité Central. E em funções de
controlo do “aparelho técnico” central (tipografias clandestinas e outras
instalações de apoio da direcção) se mantêm até 1949. Nesse ano, quando cai o
núcleo central do aparelho clandestino e surgem suspeitas a seu respeito, é
colocado em tarefas sucessivamente menos responsáveis até ser completamente
afastado da actividade e, por fim, expulso como “provocador” e assassinado.
PÂNICO Havia motivos para o ambiente de alarme e suspeita reinante no PCP em
1949-51. Em vagas sucessivas, a PIDE assaltava as casas ilegais, prendendo
dezenas de militantes responsáveis. Desde logo, Álvaro Cunhal e Militão
Ribeiro, os elementos chave do Secretariado, mas também Manuel Rodrigues da
Silva, José Martins, Joaquim Campino, Francisco Miguel. Dois outros dirigentes,
José Gregório e Manuel Guedes, conseguiram escapar à justa, com as casas já
localizadas pela polícia. Mas muitos outros funcionários caíram: Sofia
Ferreira, Dias Lourenço, Jaime Serra, Casimira Silva, Luísa Rodrigues, José
Moreira (assassinado), Colélia Fernandes, José Magro, Mercedes e Georgete
Ferreira, Severiano Falcão, Alcino de Sousa, Salvador Amália, Júlio Paour… A
prisão de Cunhal, a morte de Militão Ribeiro, a debandada de centenas de
militantes e o desmantelamento de organizações inteiras, punham termo a uma
década de crescimento incessante durante a qual o PCP se prestigiara à frente
de grandes greves e manifestações. Estavam chegados “os tempos de mais ampla e
severa repressão do comunismo”, que Salazar prometera numa das suas arengas (9).
Politicamente, era também o descalabro. Os democratas, que se tinham encostado
à capacidade mobilizadora e organizativa dos comunistas durante a guerra, ao
verificar que ingleses e norte-americanos não admitiriam um levantamento
contra Salazar, adaptavam-se agora aos novos tempos e alinhavam pela histeria
anticomunista da “guerra fria”: passaram a recusar solidariedade ao partido e,
não raro, a atacá-lo publicamente. De golpe, afundavam-se as perspectivas da
unidade antifascista do pósguerra e do próprio papel do PCP como principal
força da oposição. O espírito de vigilância exacerbado pelo perigo criou na
direcção do partido um ambiente propício à busca de “inimigos”. Naturalmente,
era impossível evitar que, sob a perseguição da PIDE, suspeitas infundadas
recaíssem sobre este ou aquele militante. Todos os que fizeram a experiência da
actividade clandestina sabem que, no clima de insegurança permanente, não há
nenhum militante cujos actos não se prestem a interpretações suspeitas se se
começar a associar todas as circunstâncias estranhas em que esteve envolvido,
os seus actos inexplicados, os deslizes conspirativos. O risco de eventuais
desconfianças infundadas sobre militantes honestos era afinal um dos preços a
pagar pela luta clandestina, com as suas incertezas, a sua crueldade, as suas
armadilhas. Aqueles que pregam moral sobre o assunto fingem ignorar que sem
esse combate tenebroso, quase corpo-a-corpo com a PIDE, não podia haver
resistência antifascista digna desse nome (10) . Seja como for, é certo que na
época a direcção do PCP, abalada pelos golpes da polícia, pela ausência de
perspectivas políticas, pelo clima internacional de caça aos comunistas, cedeu
à paranóia da perseguição. Militantes foram publicamente denunciados por
pequenas faltas, acusados sem provas, sujeitos a julgamentos sumários,
expulsos. Domingues seria um caso extremo nesta difícil experiência.
LIGAÇÕES PERIGOSAS
Parece todavia haver algo
mais, que impediu até hoje a direcção do PCP de reabrir o dossiê. Algo que tem
a ver, ao que tudo indica, com as melindrosas implicações internacionais do caso.
De facto, o pano de fundo das enoveladas acusações contra Domingues é o
pressuposto de que ele fora recrutado como espião no estrangeiro: “Se esta
prisão [no campo de internamento em França] é verdadeira, só tomando
compromissos com a Gestapo ele poderia ter sido liberto, como fizeram os
espiões mandados pela Gestapo para a Jugoslávia” (p. 25). “Está hoje claro para
o Partido que ele fez parte de uma quadrilha de provocadores e de espiões
recrutados pela Gestapo nos campos de concentração e, mais tarde, enviados pela
espionagem norte-americana para diversos países, sobretudo para aqueles
países, como Portugal e Espanha, onde os partidos comunistas vivem na mais
feroz das ilegalidades” (p. 26). Domingues cúmplice dos jugoslavos – eis o
fulcro da questão: “O papel de primeiro plano desempenhado pela infame
camarilha de Tito em todos os actos de provocação e espionagem contra as
Democracias Populares têm a sua origem no facto de numerosos espiões
americanos, provocadores e trotskistas (entre os quais mais de 150 indivíduos
libertos dos campos de internamento franceses em 1941 e enviados pela Gestapo
para a Jugoslávia para aí fazerem espionagem), se terem apoderado do poder após
a libertação da Jugoslávia” (p. 11, sublinhado meu). Temos assim que Domingues
se terá evadido (ou sido solto) do campo francês de internamento, talvez em
conjunto com um grupo de jugoslavos e que isto veio a ser-lhe fatal mais
tarde. É ainda o mesmo documento que afirma que “0 Partido Comunista Francês,
durante a Resistência, denunciou-o [Manuel Domingues] como um provocador, como
um elemento que tinha ligações com a Gestapo, facto que só chegou ao
conhecimento do nosso Partido muitos anos depois, em 1952”. (p. 24). Em face
disto, entende-se melhor a precipitação com que o Secretariado encontrou
indícios incriminatórios em todos os actos passados de Manuel Domingues; “descobria-se”
agora que ele era espião há vários anos e que viera para Portugal como espião.
Vista a esta nova luz, toda a sua actividade anterior não passava de uma
manobra odiosa. Só a morte podia castigar tal perversidade.
“UM BANDO DE GANGSTERS”
O pior foi que, passados
apenas quatro ou cinco anos, a denúncia dos “espiões” jugoslavos foi declarada
um erro pela direcção soviética. De chofre, os partidos que tinham
pressurosamente aderido à campanha de Moscovo e tinham “descoberto” os seus
próprios “espiões” viram ser-lhes tirado o tapete debaixo dos pés. Recordando:
Staline começara por formular em 1948 algumas críticas ao partido jugoslavo,
críticas cujo fundamento, aliás, se comprovou mais tarde: primeiro, que as
reformas “autogestionárias” favoreciam o crescimento da economia capitalista
privada nas cidades e nos campos; e segundo, que, com a sua “opção
democrática”, o marechal Tito ingressava, prosaicamente, na esfera de
influência norte-americana, em busca de apoios financeiros e militares. Mas o
que estava em jogo não era uma simples divergência política. Todo o controlo da
URSS sobre a Europa oriental ficava ameaçado de colapso pela defecção
jugoslava. A rebeldia de Tito era estimulada pelos Estados Unidos,
calorosamente saudada pela social-democracia internacional, aplaudida pelos
trotskistas como uma audaciosa experiência nãoburocrática. Temerosos de que o
campo das “Democracias Populares” do Leste europeu caísse como um castelo de
cartas, os dirigentes da URSS passaram aos “grandes meios”. A partir de 1949,
quando se tornou evidente que a direcção jugoslava optara definitivamente pela
aproximação às potências ocidentais e se tornava um perigoso “cavalo de Tróia”
no campo das “Democracias Populares”, foi posta em movimento pelo partido
comunista da URSS e pelo KGB uma formidável campanha de propaganda. Com a
experiência adquirida nos processos de Moscovo, não foi difícil reconstruir a
biografia de Tito, Djilas, Rankovitch, etc., de modo a “provar” que tinham sido
de longa data provocadores e agentes empedernidos do imperialismo. A sua
resistência ao nazismo fora uma fraude. Segundo um informe de Molotov, o
partido jugoslavo caíra nas mãos dum “bando de gangsters”. O objectivo desta
campanha era obviamente fazer o vazio à volta do regime titista e criar um
ambiente propício a levantamentos internos ou mesmo a uma invasão. Logicamente,
o passo seguinte foi extirpar o tumor. Uma frenética investigação policial
estendeu-se a todo o movimento comunista, em busca das “ramificações da
camarilha titista”. Tratava-se de desmascarar e isolar todos os que
manifestassem simpatia pelas posições políticas de Tito ou que no passado lhe
tivessem estado próximos. Pressionaram-se os partidos comunistas,
particularmente os das “democracias populares” da Europa oriental, para se
depurarem de elementos “suspeitos” que pudessem estar conluiados com a direcção
jugoslava ou advogar a tolerância para com ela. Assim surgiram os processos que
acabaram no fuzilamento de Slansky, Rajk, Rostov e muitos outros comunistas
desses países, condenados não apenas como simpatizantes da via titista (que
provavelmente eram) mas como espiões, agentes do antigo regime,
colaboracionistas no tempo da guerra… Só a infamação total servia os propósitos
de Staline, porque no regime “soviético” agonizante, a luta política cedia o
lugar ao enredo policial.
A VERDADE A QUE NÃO TEMOS
DIREITO
O PCP encontrava-se
nessa época, pelo próprio isolamento resultante da clandestinidade, um pouco ao
abrigo do fervilhar de intrigas e suspeições do Cominform, mas não descurava
nem por um momento a solidariedade incondicional para com a URSS. O
desmascaramento de eventuais simpatizantes do titismo terá surgido como uma
prova palpável de “firmeza”, isto é, de aprovação explícita à depuração em
curso. E aqui, as suspeitas que, devido à onda de prisões, possivelmente já
pairavam em torno da lealdade de Domingues terão ganho um tremendo impulso ao
ser associadas aos seus contactos fora do país. Ele fizera dez anos de
militância no estrangeiro, em lugares e momentos particularmente perigosos:
primeiro na União Soviética, no início dos processos de Moscovo; depois, na
guerra de Espanha, em contacto com as brigadas internacionais; por fim, na
França ocupada, durante praticamente todo o tempo da guerra. Se admitirmos por
hipótese que tenha saído do campo de internamento juntamente com jugoslavos (em
1941?) e que a eles tenha estado ligado durante o resto da guerra; ou que já
antes tivesse sido referenciado pelo KGB por camaradagem com jugoslavos nas
Brigadas Internacionais em Espanha; ou até, pior ainda, que, quando da sua
estadia em Moscovo, tivesse feito comentários imprudentes acerca dos grandes
processos que então começavam, pode dizer-se que a sua denúncia como espião
estava certa. No ambiente de caça às bruxas suscitado pela “guerra fria”, seria
grande milagre que um militante comunista com um percurso destes não saísse
chamuscado. No auge da campanha anti-titista e da repressão interna, quando a
suspeita de uma infiltração envenenava a atmosfera na direcção do partido, a
questão ter-se-lhes-á posto: “Se todos estão a descobrir espiões, seremos
ingénuos ao ponto de acreditar que só o PCP não os tem?” Aqui, a comunicação
pelo PC Francês de que Domingues fora considerado provocador no tempo da guerra
pode ter sido o elemento decisivo que faltava para ser dado o passo final: a
morte do “espião”. É certo que o folheto que vimos comentando afirma que a
denúncia do PCF só aqui foi recebida “em 1952”, ou seja, no ano seguinte à
morte de Domingues. Mas talvez não seja excessivo admitir que essa comunicação
tenha chegado antes (em 1950 ou 1951) e que a data tenha sido “corrigida” no
folheto para ressalvar a “vigilância” do partido e este não aparecer na
dependência de informações vindas do exterior. É decerto apenas uma hipótese.
Mas continuaremos no terreno das hipóteses enquanto os directos intervenientes
não decidirem relatar o que sabem. Uma coisa é certa: enquadrada a expulsão e
execução de Manuel Domingues na campanha de caça aos “espiões titistas” de 1950-53,
torna-se compreensível por que foi a direcção do PCP forçada a fazer silêncio
sobre o assunto, até hoje. As acusações contra Tito foram retiradas após a
morte de Staline, como uma malévola invenção de Béria (ele, sim, “espião do
imperialismo” e por isso fuzilado); logo, Domingues deixou de ser agente dos
nazis e norte-americanos; por outro lado, a direcção do PCP não dispunha de
elementos que provassem a colaboração de Domingues com a PIDE – o processo teve
que ser encerrado. Com uma lógica muito sua, os dirigentes do PCP acharam que
mantendo um mutismo total sobre o assunto poderiam livrarse de perguntas
incómodas. E de facto assim foi. Mas, por estas e por outras, não há meio de o
PCP conseguir escrever a sua própria história…
NOTAS
1 IV Reunião Ampliada do
CC, de Abril de 1952, noticiada no Avante n º 168, de Junho desse ano, e no
Militante nº 68, do mesmo mês.
2 Pseudónimo de Joaquim
Pires Jorge, que teve durante algumas décadas funções dirigentes no PCP.
3 Lutemos contra os
espiões e provocadores. Breve história de alguns casos de provocação no PCP.
Edições Avante, Dezembro de 1952.
4 Id., p. 31.
5 Nomeadamente: “Sobre a
organização e defesa do trabalho de direcção”, resolução do CC (Militante 121,
de Dezembro de 1962), “Para uma melhor defesa do Partido”, intervenção de
“Ferreira ” à reunião do CC de Agosto de 1963, “Defender o Partido, primeira
tarefa de todo o Partido e de cada militante”, resolução do CC (Militante 125,
Outubro de 1963), Documentos do CC do PCP, 1965/74, Edições Avante, 1975, “A
Defesa acusa” (folheto), edições Avante, Abril de 1969; e os artigos: “A defesa
do Partido é inseparável do reforçamento da organização”, (Militante 102, de
Outubro de 1959), “Ensinamentos de uma série de traições” (Militante 110, Maio
de 1961), “Por uma viragem radical no trabalho conspirativo” (Militante 104,
Maio de 1960), “Sobre a defesa do Partido” (Militante 118, de Setembro de
1962), “Lutemos intransigentemente contra a traição” (Militante 119, de Outubro
de 1962), “Guerra aos traidores” (Militante 131, de Novembro de 1964), “Militão
Ribeiro, herói comunista” (Militante 141, de Janeiro de 1966), “50 !
aniversário do PCP” (Avante 427, de Março de 1971), etc., etc.
6 Segundo testemunho
deste em entrevista gravada em 1996. Joaquim Carreira, natural da Marinha
Grande, foi funcionário do PCP nos anos 5070.
7 José Magro, Cartas da
Prisão. Ed. Avante, Lisboa, 1975.
8 Lutemos contra…, p. 24.
9 Discurso às comissões
da União Nacional, 12 de Dezembro de 1950.
10 Pensamos nas
demarcações dum Mário Soares e de tantos outros democratas que hoje apresentam
como grandes batalhas da clandestinidade as suas prudentíssimas escaramuças com
a PIDE. Política Operária nº 58, JanFev 1997