O «Chalet das Cotovias» no blogue Acrítico de António Ganhão

O Chalet das Cotovias, de Carlos Ademar

Tudo o que tem de ser feito. Eis a moral indispensável ao bem da nação, a que ditou os comportamentos privados, públicos e policiais. Em plena sedimentação do Estado Novo, nos anos 30, acontece um crime perpetrado na figura de um advogado da praça Lisboeta. Fosse um mendigo, um marçano ou um empregado do comércio e os alicerces do regime não estariam ameaçados.
Os vícios privados das figuras regradas do regime não estariam em causa.
Mas este advogado desapareceu quando se dirigia ao Chalet das Cotovias. Um palacete onde a polícia de investigação criminal é recebida pela porta de serviço (a porta destinada às entregas e aos serviçais da casa), e a PIDE, a polícia de segurança do Estado, usa a porta da frente.
Os estratos sociais, os vícios privados e o que tinha de ser feito, surgem aqui numa narrativa que nos prende à sua leitura. Um registo sóbrio sem ideias pré-concebidas, sem endeusamentos dos que não alinhavam com o regime e uma versão torpe dos que o serviam. Quem servia, também se servia. A investigação criminal, a relação entre a polícia de investigação e a PIDE têm o traço
de quem sabe do que fala. Carlos Ademar aplica toda a sua experiência adquirida na Polícia Judiciária.
Existem pequenas histórias que surgem no livro e dão corpo à história principal, ajudam-nos a compreender a época e o seu ambiente. Tudo na medida certa. Talvez um excesso de rigor, de quem profissionalmente sempre lidou com ele, nas notas de rodapé atestando o quanto se documentou. (Eu sei que em Portugal, mesmo num romance, referir um acontecimento que à época ainda não se tenha dado é pecado mortal.)
Os personagens estão bem delineados, na forma como falam, na sua fisionomia e nas suas peculiaridades. Ganham densidade e personalidade própria. Talvez sobressaia um excessivo cuidado quanto à caraterização da sua fisionomia; mesmo naqueles que passam fugazmente pela história.
A prova de fogo surge com o final a dar ao livro. A história é suficientemente desconhecida para que se adivinhe o desenlace: não deu em nada, nada se apurou e ninguém foi levado a julgamento. O regime tinha uma imagem de seriedade a manter. Como terminar um livro assim? Carlos Ademar soube como e, no fim, apenas se arrepende de não ter poupado uma jarra.
Quando vivemos tempos em que as classe ociosas se reúnem para brincar aos pobrezinhos, a leitura deste livro torna-se indispensável. Tudo isto aconteceu. Não estamos muito longe de que volte a acontecer.
António Ganhão

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