A Noite não é Eterna ou as certezas absolutas

A Noite não é Eterna,
é o título do mais recente romance de Ana Cristina Silva. É, desde logo, um título que induz esperança, que tanta falta faz aos homens que vivem estes dias de incerteza.
Tudo se passa nos últimos anos da ditadura de Ceausescu, na Roménia – um dos regimes mais sanguinárias do antigo Bloco de Leste. Pelas temáticas abordadas, inevitavelmente, à medida que a leitura avançava, emergiam títulos que fazem parte da história da literatura: A Insustentável Leveza do Ser, pela contextualização social e até pelo triângulo amoroso que se forma; 1984, pelo sentimento de vigilância do cidadão por parte do Estado, tecnológico no livro de George Orwell ou com olhos humanos, mas pouco ou nada e não menos eficazes, no caso da obra de Ana Cristina Silva; e até Teresa Raquin, de Zola, quando é pensado e repensado o assassínio de um dos vértices do triângulo.
Paul, marido de Nadia, a protagonista, é um dedicado e ambicioso dirigente do partido no poder, disponível para fazer o que for preciso para ascender na hierarquia, incluindo entregar Drago, o filho de três anos do casal, ao Estado. O objectivo era que crescesse com outros meninos longe das influências familiares e com os valores que ao regime interessavam, para que viessem a ser a essência do futuro e verdadeiro exército revolucionário, vanguarda na defesa da revolução. Apenas mais uma tentativa da criação laboratorial do homem novo, falhada como as restantes, já se vê. Nadia, que nunca viu com bons olhos o regime, mas que se resignava face à ambição e mais do que isso, à prepotência do marido, ia escondendo as suas opiniões até que soube do destino que Paul quis dar ao filho de ambos, em prol da sua carreira.
A trama desenvolve-se em torno das tentativas que a mulher faz para resgatar o filho e depois, o que continua a fazer para que a outras crianças não suceda o mesmo que a Drago. É nestas deambulações que surge Vasile, um revisor da rede ferroviária internacional da Roménia, que por via disso tem acesso a outros países e contactos com outras realidades sociais. Ele integra uma organização internacional clandestina que visava não só denunciar as atrocidades cometidas pelo regime de Ceausescu, como também salvar o maior número possível de crianças dos internatos estatais da Roménia, onde só não faltava a fome, a doença e a morte.
Subjacente à história de Nadia, Paul e Vasile, A Noite não é Eterna dá-nos uma visão crua da realidade da Roménia durante este período, que termina na sequência da queda do Muro de Berlim, com uma revolta popular. Seguiu-se-lhe o julgamento, condenação e execução do casal presidencial, de que a obra nos dá conta sob o olhar de Nadia, que desde logo ficou céptica relativamente ao novo regime que se procurava instalar, tendo em conta a forma cruel e populista como ajustou contas com o passado.
Um belo livro, também porque a autora conseguiu imprimir um ritmo de escrita que nos envolve no enredo de tal forma, levando-nos a continuar a sua leitura sem darmos pelo esvoaçar do tempo. Além da trama e dos preciosos apontamentos históricos que nos traz, acima de tudo, levanta-nos em cada página a velha, mas sempre presente questão das certezas absolutas, agudas, irracionais; daquelas com que o poeta Reinaldo Ferreira dizia que se faziam os heróis de que alguém se há-de servir, em contraponto à dúvida que deve prevalecer, como diria o velho Descartes, até que a questão se apresente ao nosso espírito tão clara e tão distintamente, esgotando todas as possibilidades de a pôr em dúvida. Mas, bem o sabemos, tal só é possível com a liberdade que permite pôr questões sem medo, procurar as respostas sem medo e tirar conclusões sem medo, tudo quanto um regime totalitário não permite. Como bem o documenta a obra, o medo é o cão de guarda que afugenta os menos afoitos, prolongando assim o prazo de validade à ditadura.

Pelo que fica escrito, não posso deixar de recomendar vivamente a leitura deste A Noite não é Eterna, certo de que os leitores ficarão mais ricos enquanto cidadãos - para isso serve um livro digno desse nome como este, porque eleva a literatura; certo de que, quem escreve porque não encontra nada satisfatório, se ler este livro talvez deixe de escrever; certo ainda e para terminar, de que se isso acontecesse, o mundo não perderia absolutamente nada, a floresta agradeceria e com ela todos nós. 

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