Carta de despedida de Manuel Buiça e a receita para fazer um herói
Neste dia de 1908, D. Carlos e o
Príncipe herdeiro foram assassinados no Terreiro do Paço. Um dos regicidas, Manuel Buiça,
professor primário, uns dias antes escrevera uma carta de despedida:
«Apontamentos
indispensáveis se eu morrer.
Manuel
dos Reis da Silva Buiça, viuvo, filho de Augusto da Silva Buiça e de Maria
Barroso, residente em Vinhaes, concelho de Vinhaes, districto de Bragança. Sou
natural de Bouçoais, concelho de Valpassos, districto de Vila Real
(Traz-os-Montes); fui casado com D.Herminia Augusta da Silva Buíça, filha do
major de cavalaria (reformado) e de D.Maria de Jesus Costa. O major chama-se
João Augusto da Costa, viuvo. Ficaram-me de minha mulher dois filhos, a saber:
Elvira, que nasceu a 19 de dezembro de 1900, na rua de Santa Marta, número… rez
do chão e que não está ainda baptisada nem registada civilmente e Manuel que
nasceu a 12 de setembro de 1907 nas Escadinhas da Mouraria, número quatro,
quarto andar, esquerdo e foi registado na administração do primeiro bairro de
Lisboa, no dia onze de outubro do anno acima referido. Foram testemunhas do
acto Albano José Correia, casado, empregado no comércio e Aquilino Ribeiro,
solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem commigo e com a avó materna
nas Escadinhas da Mouraria, 4, 4º andar, esquerdo. Minha família vive em
Vinhaes para onde se deve participar a minha morte ou o meu desapparecimento,
caso se dêem. Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar
senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os
eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e
por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos. Lisboa, 28 de
janeiro de 1908. Manuel dos Reis da Silva Buiça. Reconhece a minha assignatura
o tabelião Motta, rua do Crucifixo, Lisboa.»
É um documento pungente que, ao relê-lo, me fez lembrar, sabe-se lá porquê, o poema de Reinaldo Ferreira, o filho, intitulado «Receita para fazer um Herói», que aqui deixo também:
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.