As Novas Formas de Tirania

Aqui fica a minha colaboração mensal com o Lusitano de Zurique, o jornal da comunidade portuguesa daquela cidade Suíça, distribuído gratuitamente por todos os sócios.
O tema prende-se com os perigos reais que colocam em causa a liberdade e a democracia.
O tema prende-se com os perigos reais que colocam em causa a liberdade e a democracia.
Em baixo deixo o texto, já que a leitura nas fotografias não é viável.
Sem novidade vos digo que,
independentemente das formas como foram instauradas as tiranias ao longo da
História do Homem, para as manter, foi necessário construir um aparelho
repressivo. Nas sociedades contemporâneas, este aparelho tinha como base a
censura oficial, com os seus censores, cujo trabalho era exactamente o de
cortar o que não interessava publicar, a bem do regime. Integrava-o também, a legislação
necessária para dificultar ou impedir a existência de determinados organismos
ou actividades que pudessem obstaculizar o rumo decidido, como por exemplo a
criação de movimentos de cidadania ou o direito à reunião. Depois, claro, havia
que prender quem prevaricava e desmantelar os grupos desordeiros que não
cumpriam as leis. Assim nasceram as polícias especializadas nestes crimes
políticos, polícias que deixaram um rasto de violência e morte que deve fazer
parte do património memorial dos respectivos povos. Finalmente, faltava quem
julgasse os «prevaricadores criminosos» e para isso era necessário um tribunal,
fosse ele constituído por militares ou por magistrados, procuradores e juízes,
que muitas vezes, particularmente estes, se esqueceram da Justiça em nome de
valores para eles mais altos, a defesa da situação e de quem a defendia, o que
não dignifica quem exerceu ou exerce tais cargos – autênticas nódoas negras de
gordura rançosa na dignidade do cargo e assim, de toda uma classe que deve
merecer o respeito de toda uma sociedade, mas tudo deve fazer para a merecer.
No entanto, nas sociedades que vivem em regimes
democráticos de cariz ocidental, outras formas de tirania mais sofisticada
foram criadas e existem, embora os cuidados tradicionais para as manter se
tenham tornado dispensáveis devido à sua essência, que abordaremos mais
adiante. Dizem-se sociedades democráticas porque, de facto, o povo pode votar;
o voto é universal, ou seja, um homem (ou mulher), um voto, independentemente
do seu estatuto social, riqueza, cultura, ou nível académico. As eleições são aparentemente
livres e os candidatos têm aparentemente as mesmas oportunidades.
Falamos, portanto, de democracia, que
Churchill definiu como o pior de todos os regimes à excepção de todos os outros.
E não temos argumentos para o contestar. Não sendo o regime perfeito, não os há,
não se conhecem outros que tenham dado melhores provas de garantir a paz e o
desenvolvimento dos povos. Foi isso que o antigo primeiro-ministro do Reino
Unido disse. A democracia é um regime que tem a capacidade de se regenerar, de
se ir aperfeiçoando com o evoluir da sociedade. O melhor exemplo que podemos
apresentar prende-se com o direito ao voto. Nas democracias mais remotas,
apenas alguns homens detinham esse direito, direito que advinha do seu estatuto
social. Muitos homens e todas as mulheres não o possuíam. Mais tarde todos os
homens e algumas mulheres passaram a poder votar, para, finalmente, mas só por
força da pressão exercida pela sociedade, o voto passar a ser universal. Neste
caso, a democracia foi-se aperfeiçoando com a luta dos povos pelos direitos que
entenderam reivindicar. Na História do Homem, o opressor nunca ofereceu quaisquer
benesses ao oprimido, foi sempre este que pela sua persistência e sacrifício, as
conquistou. Ao oprimido nunca nada lhe chegou de bandeja.
De há muito tempo, o poder económico foi-se
entranhando nos meandros da gestão da democracia, desde logo através do apoio
financeiro aos partidos. Mais às claras ou mais às escondidas, aconteceu e vai
acontecendo. Tal situação gera inevitáveis casos de promiscuidade, ao levar a
que o poder político se veja na obrigação de ceder a pressões dessas empresas
para serem beneficiadas nos negócios do Estado, possibilitando que alguns
políticos apareçam mais tarde como consultores ou administradores dos grupos
económicos beneficiados. Assim, estes políticos, transformados em altos quadros
do sector privado, passam a ter uma maior capacidade de influenciar o poder
político graças aos contactos que deixaram nos respectivos partidos. Tudo isto
acontece e não é propriamente segredo. Também ao nível da comunicação social se
foram notando alguns desequilíbrios por força do domínio absoluto que os grupos
económicos passaram a ter neste sector teoricamente vital para a saúde da democracia,
pela sua capacidade de gerar uma opinião pública forte. Durante muitos anos
houve jornais economicamente independentes, em que, de forma clara ou não, apresentavam
as suas tendências ideológicas diversificadas, que tocavam todo o espectro
partidário. Assim aconteceu não só no Portugal democrático, como noutros países
que muito antes do nosso conheceram a democracia.
Em 1989, porém, deu-se um acontecimento
que abalou grandemente as estruturas das nossas sociedades. A queda do Muro de
Berlim teve consequências com grande impacto a este nível. A verdade é que o
mundo viveu muitas décadas sob a égide da guerra fria. As duas superpotências
de então, EUA e URSS, digladiavam-se por todo o mundo sem se beliscarem. De um
lado estava a perfeição do capitalismo, o fim da história, do outro o
comunismo, o regime perfeito para os seus defensores.
A ideologia comunista granjeou muitos
adeptos no Ocidente durante a guerra e no pós-guerra, e os governantes ocidentais
temeram que os partidos comunistas pudessem vir a ter muita força nos
respectivos países. Os trabalhadores, operários e camponeses, camada social
mais reivindicativa e tentada a apostar em novas e mais radicais experiências
governativas, por não terem nada a perder, ganharam muito com isso. O temor dos
governantes e empresários do Ocidente fê-los ceder ano após ano às
reivindicações salariais e de melhores condições de trabalho. Temiam que a não
cedência pudesse ter como contrapartida o engrossar do grupo dos «vermelhos»
dentro das suas casas. A onda foi favorável aos operários que nos anos 70 e 80,
chegaram a ganhar o estatuto de pequenos burgueses no contexto social, afastando-os
à partida do eventual desejo de aderir à tão temida mudança, porque então já
tinham algo a perder, o pequeno conforto que foram conquistando gradualmente.
Com a queda do Muro de Berlim, que
simboliza o desmoronamento do bloco de Leste e o desfazer das ilusões de muitos
milhões de comunistas em todo o mundo, a esquerda ressentiu-se, com reflexos
evidentes mesmo na esquerda democrática, que tinha fortes apoios nos partidos
ligados à social-democracia europeia. Por sua vez, a direita e o poder
económico apressaram-se a ocupar o espaço deixado livre pelas hesitações da
esquerda e galvanizaram-se, tomando o controlo da economia de forma tão
evidente e totalitária que as gerações europeias do pós-guerra nunca haviam conhecido
algo assim. Daí o enorme retrocesso que se tem verificado nas leis do trabalho
um pouco por todo o lado, ganhando as relações trabalhador/patrão foros de
enorme precariedade, porque a segurança do emprego e a estabilidade que ela
acarreta, morreu ou, no mínimo, está moribunda.
Com os meios de comunicação social totalmente
nas mãos dos grandes grupos económicos, remam todos para o mesmo lado,
defendendo os interesses dos proprietários e dos que os representam, contra os dos
mais humildes e de quem procura defendê-los. Ao longo dos anos, o poder
político vendeu-se ao poder económico e assim, por este tempo, os Estados não
têm força para se impor; dependem cada vez mais dos grandes grupos que tudo
dominam, de que as apreciações que fazem as empresas de rating, tuteladas por esses mesmos grupos económicos, são um dos
mais dramáticos exemplos. Naturalmente, estas empresas agem dentro do princípio
que faz agir os órgãos de comunicação social, que trabalham as notícias por
forma a favorecerem os interesses de quem neles põe capital e por isso manda. Enquanto
a comunicação social envenena a cabeça de quem a lê, vê ou ouve, os pareceres
das empresas de rating envenenam a
credibilidade dos países, se for esse o interesse de quem dita as ordens. Mas
têm força, muita força neste mundo estranho que se rege por mecanismos que
fogem à compreensão da esmagadora maioria dos cidadãos. O facto de um parecer
ser negativo pode fazer com que os juros das dívidas desse país disparem,
agravando fortemente as já de si difíceis condições desse mesmo país, podendo
mesmo contribuir para que se dê o corte do financiamento externo. Verdadeiramente
dramático.
Os famosos «mercados», que pela forma
como tremelicam fazem lembrar o pudim flã, assentam afinal nas estruturas mais
sólidas e cruéis, por estarem ligados aos mais poderosos grupos económicos, que
tudo comandam e apenas têm um objectivo: o lucro. Deixemos aqui o que nos
parece ser um bom exemplo, ocorrido em Portugal há pouco mais de um ano: um grupo
de cidadãos elaborou um abaixo-assinado contra as medidas de austeridade que o governo
de então vinha tomando ao longo da legislatura, esmagando a economia e
empurrando vastas camadas da sociedade para o desemprego e a miséria. Esse
documento foi divulgado nos órgãos de comunicação social e teve bastante repercussão
porque entre os assinantes contavam-se técnicos altamente considerados nas áreas
da economia e finanças. Resultado: os juros da dívida começaram a subir porque
os tais «mercados», seja lá isso o que for, padecem da tal hipersensibilidade
do pudim e agitaram-se. É preciso cumprir as determinações que vêm sabe-se lá
de onde, por muito injustas que sejam, por muito sofrimento que causem, sem
protestar, sem pestanejar, porque os «mercados» se podem enervar e se isso
acontece, os juros disparam, a situação dos países piora e os pareceres das
empresas de rating vão sendo cada vez
mais desfavoráveis, fomentando também por aí o aumento da taxa de juros. Entramos
então num ciclo vicioso de que apenas saem beneficiados os ditos «mercados»,
que verdadeiramente não passam de poderosos fundos de investimento, tutelados
pelas grandes multinacionais, que são proprietárias também das empresas de rating e mandam na Organização Mundial
do Comércio. Este organismo, pela fragilidade do poder político, foi o potenciador
do chamado comércio livre, que sem se preocupar com o equilíbrio das condições
laborais nos diversos países, levou à deslocalização de muitas fábricas para regiões
do mundo onde a terminologia «condições e segurança no trabalho» não é
conhecida. Com os custos de produção reduzidos a uma ínfima parte dos
conseguidos até ali, os lucros dispararam. As multinacionais atingiam o seu 7º
céu. Daqui resultou um prejuízo enorme para os povos ocidentais que, ao longo
de décadas, podemos mesmo dizer centenas de anos, se considerarmos o início da
Revolução Industrial, lutaram pelo tal conforto que começaram a perder nos anos
noventa e continuam e continuarão a perder, se nada for feito.
Pergunta-se: perante estas novas formas
de tirania, que não precisam de aparelhos repressivos que as defendam, mas impedem
os nacionais de um país democrático de escolher através do voto o seu modo de
vida, voto que assim deixa de contar para efeitos da condução das políticas,
que fazem os Estados? E o poder político, como fica neste ciclo histórico que
nos arrasta para condições de vida de outros tempos a que não julgávamos poder retroceder?
A política tem que voltar a impor-se face à economia. Só assim a democracia
ganhará. A questão reside em saber o que será necessário, porque agora é do
mundo que falamos e não apenas de Portugal. O mal é global, pelo que a solução tem
de ser também global.
Sem querer ressuscitar mortos, mas também
sem preconceitos e procurando recuperar o que de bom alguns nos deixaram e que
se ajusta a problema tão premente, talvez seja tempo de que ecoe um grito dos
mais atolados neste pântano em que nos meteram, para que todos o ouçam e se
mobilizem: «Trabalhadores de todo do mundo uni-vos.»
Permita-se a este escriba modesto,
talvez utópico, mas certo de que é pela utopia que vamos, acrescentar que se
falhar a união dos que vivem da força do seu trabalho, ficará grandemente comprometido
tudo aquilo que custou muitos anos de luta, muitas vítimas gerou e ficaram pelo
caminho. Não esqueça, caro leitor, nada foi adquirido de forma gratuita pelos
mais humildes, tudo foi conquistado. Só o medo fez ceder os detentores do poder
e do capital, só o medo os fará ceder, mas só a união dos que mais sofrem os
fará ter medo. Para grandes males, grandes remédios.
Carlos
Ademar