A Liberdade, a Ciência e o Futuro - no Jornal Tornado
A Liberdade,
a Ciência e o Futuro
Todos o sabemos, Portugal nunca foi um país de ciência
de ponta. O mais próximo que esteve desse patamar foi quando os nossos
antepassados deram o seu maior contributo à História da Humanidade, ao rasgarem
os mares desconhecidos e fazerem emergir à luz do saber a existência de terras
e povos, tornando o mundo mais pequeno e ajudando a derrubar mitos milenares.
Sabe-se hoje que os Descobrimentos, longe de terem sido obra do acaso, ou levados
a cabo por meros aventureiros que se limitavam a lançar os barcos ao mar e os
olhos aos céus em busca da ajuda divina, tiveram na retaguarda uma estrutura
científica que inovava e gerava saber; inventava em terra para que se pudesse
avançar no mar com a segurança e a assertividade possíveis. Atingimos níveis de
vanguarda com nomes como Pedro Nunes, na matemática, Garcia da Horta na
botânica, Damião de Gois na linha da frente do humanismo, Duarte Pacheco
Pereira na conjugação do saber fazer no mar e na terra, André de Gouveia e Pedro
Fonseca na pedagogia e pensamento filosófico, entre tantos outros. Tivemos
marinheiros que chegavam do mar e iam falar com os homens de ciência, dar-lhes
conta das suas dificuldades, levantar-lhes problemas para eles os tentarem
resolver. E neste campo os nomes são tão conhecidos que nos dispensamos de evocá-los
aqui. Quando uma sociedade está em alta, em alta estão as ciências, mas também
as artes e aqui trazemos à liça Nuno Gonçalves e Grão Vasco, na pintura, Francisco
de Holanda na crítica e teoria da arte, Gil Vicente no teatro e na ourivesaria,
Camões na poesia, Fernão Mendes Pinto, na narrativa de viagens, Afonso
Domingues e Francisco de Arruda na arquitectura. Todos eles seriam mestres de
alto gabarito em qualquer parte do mundo, mas foi aqui que a saga dos
Descobrimentos começou, que a globalização deu os primeiros e fundamentais
passos, neste canto da Europa, encravado entre a ameaçadora Espanha e esse
monstro assustador chamado oceano, longe dos cruzamentos culturais que geravam
a Renascença, florescente lá para o centro do continente europeu. Tudo isso só
foi possível porque Portugal tinha ambição de ir mar adentro, mas também a
liberdade de criar e agir. Portugal tinha estratégia, vontade, e dependia dos seus
homens. O conhecimento prático, trazido das viagens, deu ânimo ao conhecimento
científico e este permitiu que as viagens fossem mais longas, com mais
segurança e com o Norte bem fixo nas cabeças dos mareantes.
E mesmo quando D. João II se enganou, tinha razão.
Quando mandou Colombo às urtigas, ele sabia que o melhor caminho marítimo para
a Índia, a grande obsessão daquele tempo, não era pelo Ocidente. Claro que em
busca da Índia o genovês descobriu a América, que se revelou vir a ser um
melhor negócio. Mas foi uma descoberta acidental. Anos depois, Portugal não
teve razão e a decisão marcou o princípio do fim deste ciclo único. Foi quando
D. Manuel assinou o édito que expulsou os judeus. Não foram razões científicas,
claro, mas religiosas. Deve considerar-se esse édipo, de 1496, uma das mais
perniciosas, se não a mais perniciosa, das decisões da história deste país. Foi
dramático, catastrófico mesmo, a tal ponto que Portugal entrou em declive
descendente em termos de desenvolvimento, de que nunca mais recuperou. Com os
judeus, foi-se o capital para investimento, foi-se o saber fazer, foi-se a
ciência e assim, o futuro que era possível perspectivar, tendo em conta o patamar
então atingido. De forma irremediável, perdemos o barco do progresso. Se com a
América ganhou a Espanha, com os judeus lusos, ganhou a Holanda, que
gradualmente foi espalhando as suas cores por esse mundo, em lugares onde
Portugal chegara antes, mas onde eles chegaram a seguir e ocuparam, muito por
força do saber e dos capitais que expulsámos com os judeus. Por lá desenvolveram
a banca, os seguros, por lá viram nascer e florescer o grande Espinosa, um dos
maiores vultos da história da filosofia, descendente directo de portugueses.
Depois, como se não bastasse e para acabarmos com o
resto, chamámos a Inquisição e ela veio em 1536, para nossa desgraça e lá se
foi a liberdade, condição sine qua non
para soltar a reflexão, potenciar a criatividade e possibilitar o
desenvolvimento científico. Com o seu machado afiado, foi cortando a direito «a
raiz ao pensamento», foi fomentada a denúncia entre vizinhos, familiares,
tornando-nos cada vez mais pequenos, porque proibidos de pensar, com medo de
pensar, não fosse alguém ouvir-nos falar ou ler o que escrevíamos. A Inquisição
tomou conta do país, porque tomou conta da cabeça dos portugueses. A sua acção
fez Portugal regressar à obscuridade das trevas, de onde conseguira espreitar
por uma frincha durante pouco mais de cem anos. A frincha por onde entrava a
luz, foi pela Inquisição tamponada e assim terminou o período em que chegámos
primeiro do que outros aos cantos desconhecidos do mundo, com um avanço sobre
eles de largas dezenas de anos, ou mais de duzentos, como sucedeu no caso da
Austrália.
Seguiram-se séculos marcados pela decadência, em que
Portugal perdeu as oportunidades que outros países não enjeitaram, as revoluções
agrícola e industrial. Portugal apenas respondeu através de Marquês de Pombal com
alguns gestos positivos ao reformar a educação, afastando a Igreja dessa
responsabilidade, e ao fomentar a indústria. Porém, tudo não passou de um
fogacho, sem consequências porque o exemplo não foi seguido, e com o
afastamento do homem que parecia ser o único a ver a necessidade do que fazia
para o futuro do país, tudo arrefeceu e voltou praticamente ao ponto de partida.
Não havia massa crítica suficiente em número e preparação, que pudesse apoiar e
dar seguimento às reformas iniciadas pelo ministro de D. José. A Inquisição
cortava toda a criatividade e queimava os judeus que resistiam à conversão.
Já se sabe, na área das ciências, Portugal conta apenas
com um prémio Nobel, o da medicina. Egas Moniz foi galardoado em 1949 pelas
suas descobertas no tratamento de certas doenças psiquiátricas com a sua famosa
lobotomia, que muitos hoje questionam. Ainda assim, ganhou o prémio, mas por
esse tempo, o seu nome era o ponto luminoso que emergia de um sector científico
bastante acinzentado. Será bom recordar que vivíamos uma ditadura fascizante, a
Inquisição do século XX, que não terá ficado muito feliz com o prémio tão
prestigiado, já que o premiado não era propriamente um entusiasta do regime.
Por força da decadência que se continuou a fazer
sentir, e que o retrógrado Estado Novo acentuou de forma clara, aquando do 25
de Abril, um terço dos portugueses eram analfabetos, tornando Portugal no país
mais atrasado da Europa, também a este nível. Um verdadeiro vexame para o povo
que deu início ao cruzamento dos mares e ligou o Ocidente ao Oriente, o Norte
ao Sul. Sobre a queda da ditadura decorreram 42 anos, completam-se este mês de
Abril. Uma das grandes preocupações do novo regime passou por combater essas
cifras vergonhosas o que, graças ao esforço de alguns e à lei da vida, foi
conseguido, podendo considerar-se que o analfabetismo é hoje residual, ainda
que seja um assunto que deva continuar a merecer a atenção dos governantes.
Muitos se recordam da aposta forte que a partir de
meados da década de noventa foi feita no ensino, falando-se da «paixão pela
Educação» no primeiro governo de António Guterres. A verdade é que alguma coisa
foi feita, não só aumentando a dotação orçamental para a área, como chamando e
dando condições aos cientistas portugueses que no estrangeiro faziam carreiras
de sucesso, para se instalarem e ajudarem a desenvolver o país onde nasceram. O
que em muitos casos foi conseguido. Mariano Gago, talvez um dos melhores
ministros da área científica que o Portugal contemporâneo conheceu, teve um
papel importantíssimo nesta matéria. Vinte anos volvidos, a ciência em Portugal
voltou a ser uma realidade. Provam-no o reconhecimento internacional de alguns
jovens cientistas de áreas de trabalho diversas, através das descobertas que
têm patenteado nos últimos anos, algumas de verdadeira vanguarda. Não falamos
de casos isolados como no tempo de Egas Moniz. Basta que façamos um esforço de
memória e variadíssimos exemplos emergem como descobertas de assinalável
relevância e outras vão surgindo, mostrando a vitalidade deste sector. Sem
corrermos demasiado risco de exorbitarmos a importância da ciência por estes dias
no país, podemos adiantar que vivemos um período que, a este nível, só encontra
paralelo nos idos de Quinhentos. E esta é a aposta certa. Portugal não é
conhecido propriamente pelas suas riquezas naturais. De há uns anos a esta
parte, fogem do país as multinacionais que assentam a sua produção em mão de
obra barata e desqualificada. Apesar de tudo, muitos países existem onde é
possível encontrar mão-de-obra ainda mais barata. Se excluirmos as remessas dos
emigrantes, cujo número, infelizmente, têm aumentado brutalmente nos últimos
anos, resta-nos o turismo, os serviços e sempre, sempre a ciência, podendo esta
contribuir para potenciar a agricultura e a indústria, como aliás tem feito.
Acontece que a última legislatura foi um desastre
também na área científica, ameaçando destruir o magnífico trabalho que vinha a
ser feito e que estava já a dar frutos. Vimos jovens cientistas a
protestar pelo corte das bolsas, que os impediam de dar continuidade aos
trabalhos que vinham a realizar, apesar de terem sido atempadamente aprovados.
Foi uma política gémea desta, de corte cego, mas essencialmente de desprezo
pela ciência, que nos manteve na escuridão durante séculos, levando a que
Portugal chegasse ao terceiro quartel do século XX como o país mais atrasado da
Europa. Particularmente numa altura de enorme competição, em que o mundo é a
rua que estreita e encurta todos os dias, os governos, quaisquer que eles
sejam, não se podem dar ao luxo de brincar à cabra-cega com o futuro. A ciência
tem de ser uma das principais prioridades em Portugal. Será um crime de lesa
Pátria desvalorizar a ciência. Que a actual equipa governamental não deixe de
reverter as asneiras perpetradas pela anterior, também nesta matéria. O futuro
de Portugal passa pela ciência. Que não se desperdice o investimento efectuado e
não se permita que o povo português perca de novo o futuro. Essa é a
questão.
Carlos Ademar