As primeiras linhas do «Chalet das Cotovias»
«O que restava do advogado foi
descoberto cerca de um mês depois daquela viagem inusitada a Sintra. Aconteceu
no dia que se seguiu a uma tromba de água e o alerta foi dado por um caçador
ocasional, residente na vila, paredes-meias com o Hotel Central. O homem
caminhava na vasta zona de pinhal do Ninho das Cotovias e, apesar da abundância
de caruma seca, as marcas das botas iam ficando bem vincadas na terra ainda
mole, gerando um trilho que denunciava o percurso seguido. Um pouco por todo o
lado, pequenos pedaços de ramos serviam como prova da força bruta com que foram
esgalhados das árvores, devido à tempestade estival que assolou toda a região.
Seguia com a arma apoiada
no ombro e uma lebre pendurada à cinta, que baloiçava a cada passo, quando foi
desperto para a inquietude dos seus dois perdigueiros. Ainda se colocou em
posição de atirador, suspeitando estar iminente a saída de nova presa, mas
rápido se apercebeu de que os animais andavam como loucos, mas de volta de um
pedaço de tecido escuro que parecia sair das entranhas da terra, como qualquer
arbusto rasteiro. Aproximou-se e mexeu-lhe com a ponta do cano comprido da
caçadeira. Era parte da aba de um casaco de homem. Estranhou o achado e
acocorou-se para ver melhor. O único botão visível pareceu-lhe dos caros.
Cuspiu-lhe e limpou-o com o lenço, ficando a vê-lo mais em pormenor. Tinha bom
aspecto, era preto cortado por delicadas linhas de tons mais claros e
apresentava gravado um trevo de quatro folhas. Os cães não paravam de ladrar e
tentar fossar junto do tecido, procurando abocanhá-lo. Nem pouparam o dono a
encontrões na ânsia de lhe chegar, levando-o a gritar-lhes mais do que era
costume para que sossegassem. Olhou à sua volta e, como suspeitava, sentiu-se o
único humano por aquelas bandas. Só na sua dianteira não havia pinheiros, pois
um acidentado declive, com alguns arbustos e vegetação mais rasteira, começava
ali, terminando duas dezenas de metros acima, no planalto onde fora edificado o
Chalet das Cotovias, de que conseguia ver a parte superior do telhado.
Pensou que seria um
desperdício deixar ficar aqueles botões, bem como no quanto a sua mulher lhe
agradeceria se lhos levasse. Com a mão disponível, começou a puxar a aba suja do
casaco tentando libertá-lo da terra. Porém, a tarefa não se mostrou tão fácil
quanto a pensara. Pousou a arma e usou toda a força que conseguiu encontrar,
mas pouco mais avançou. Ganhou ânimo ao ver um segundo botão e não soçobrou
mesmo quando um odor desagradável se desprendeu, a que, de resto, nem ligou, tão
empenhado estava em puxar. Foi ao procurar uma posição mais favorável para
levar de vencido o peso da terra, que viu por debaixo do casaco escuro o tecido
branco e fino de uma camisa e, assustado, parou de súbito. Só então e num ápice,
associou a reacção dos cães e o cheiro que passou a sentir às peças de
vestuário presas na terra. Uma certeza preencheu-o como um arrepio: o casaco
não saía porque estava vestido num cadáver que jazia enterrado sob os seus
pés.»
(Aviso: isto é para acabar de vez com a 1ª edição)