O «Públicio» entrou no Chalet das Cotovias e conta o que viu

Um texto de São José Almeida
«Portugal, 1935. Um homem aparece morto em Sintra. Consta que foi àquela vila atrás de uma irmã, participante em encontros culturais que, segundo alguns, eram também encontros lésbicos. É esta a história real na origem de O Chalet das Cotovias, de Carlos Ademar.
Um retrato do que foi a construção do Estado moderno em Portugal, já na face da ditadura do Estado Novo, através da tensão existente entre as forças de segurança que concretizaram a imposição da nova autoridade central - é isto que resulta do novo romance de Carlos Ademar, O Chalet das Cotovias, lançado pelas Edições Parsifal.
Recorrendo a um caso real que lhe foi relatado, em 2005, pela jornalista Isabel Braga - "Ela contou-me a história que tinha já investigado e disse-me que eu devia agarrá-la" -, Carlos Ademar constrói O Chalet das Cotoviasrecriando a tensão existente entre a Polícia de Investigação Criminal (PIC), criada em 1917 (em 1945 daria lugar à Polícia Judiciária), e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), criada em 1933 e substituída, também em 1945, pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE).
O autor parte assim da história oral que foi transmitida entre gerações desde a época em que o caso decorreu, em 1935: um homem dado como desaparecido é depois encontrado morto num terreno perto de uma estrada em Sintra, depois de ter ido àquela vila no encalço de uma sua irmã, sobre a qual ouvira dizer que frequentava uma tertúlia cultural de mulheres - das quais se dizia em Lisboa serem lésbicas. Um grupo da elite social portuguesa do qual, conforme a história oral, faziam parte mulheres como Fernanda de Castro e uma filha do então Presidente da República Óscar Carmona.
Num misto de romance de costumes, romance policial e romance histórico, Carlos Ademar cria uma teia em que apresenta a relação tensa entre a PIC e a PVDE numa acção ficcional mas que retrata o que foi a construção de uma nova normatividade social, quer política, quer de costumes. Ou seja, uma sociedade em que qualquer espécie de afirmação política contra o regime era enquadrada pela violência repressiva da PVDE, que agia de forma brutal e arbitrária. Mas em que a imposição da heteronormatividade - iniciada pela aprovação da Lei da Mendicidade em 1912 - vai sendo feita em crescendo e é ampliada com a ditadura.
O Chalet das Cotovias ilustra assim a transformação da autoridade institucional na sequência da instalação do Estado central moderno em Portugal, mas já no início da sua fase mais repressiva. "Foi um processo que foi sendo construído, até porque a mentalidade não se muda por decreto - é uma evolução lenta, mas a construção do Estado moderno vai atacando o liberalismo de costumes", sublinha Carlos Ademar, que acrescenta: "As pessoas que não se encaixavam no modelo estavam entregues a si próprias ou tiveram de sair do país. Os que tiveram possibilidade saíram, como terá sido o caso de Judith Teixeira, de António Botto e de Raul Leal, os "poetas de Sodoma"."
Ficção, realidade
É assim o Portugal dos anos 30 do século XX que é recriado por este autor de romances de cariz policial e histórico que no passado foi investigador da Polícia Judiciária na secção de Homicídios e que hoje em dia é professor na Escola de Polícia Judiciária. O Portugal classista e fortemente estratificado, em que uma cidade como Lisboa estava ainda povoada pelos tipos sociais do Antigo Regime, mas em que já são visíveis os primeiros passos da industrialização. Um Portugal com miseráveis e famélicos, com pobres de pedir e remediados, com assistencialismo católico e revolucionários que acreditam num mundo novo.
Mas mesmo partindo de uma história real, O Chalet das Cotovias é uma ficção, explica o autor, que confessa mesmo que foi "trabalhando nela, tentando encontrar pistas", até que "um dia, em viagem por Moçambique, ao ler um livro", se deparou com "um capítulo feito pela Isabel Braga, O crime das cotovias, onde ela já precisava as datas do crime".
Com as datas, Carlos Ademar conseguiu encontrar e consultar o processo original no arquivo da PIC, depositado no Museu da Polícia. "Na altura, já começara o romance e tinha até já cerca de cem páginas escritas", conta o autor, confessando: "Depois de ler o processo fiquei decepcionado, porque não há uma única referência ao Chalet das Cotovias, nem aos nomes sonantes que a história oral reproduz." O homem realmente assassinado em 1935 em Sintra, continua, vivia com uma mulher, mas esta não foi assassinada. "No romance, a personagem da Margarida [amante de Luís Albuquerque e casada com o inspector da polícia política] é ficção, ela era necessária à trama ficcional que eu quis construir e foi necessária para poder dar a vertente da PVDE."

Ainda fazendo o paralelo com o processo original, Carlos Ademar revela que adaptou as datas do caso real para a ficção. "Adiantei seis meses a acção", explica: "No caso real, o homem desapareceu em Dezembro de 1935 e o corpo foi encontrado a 23 ou 24 de Fevereiro de 1936; eu centrei a acção antes para poder ter um enquadramento de época que me permitisse falar da PIC e da PVDE no contexto histórico do início da Guerra Civil de Espanha, da fundação da Legião Portuguesa e da criação do Campo do Tarrafal."»

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