O Chalet das Cotovias no Jornal de Sintra
O Chalet ainda mexe. Desta feita, um artigo bem assertivo publicado no Jornal de Sintra.
«Jornal de Sintra
31 de Outubro de 2014
Carlos Ademar - O Chalet das Cotovias
Um
policial clássico passado em Sintra com força literária inusitada, publicado em
2013, O Chalet das Cotovias, de Carlos Ademar, antigo inspector da Polícia
Judiciária e professor na Escola Superior de Polícia, resgata para a literatura
portuguesa o romance policial clássico segundo o tradicional modelo de Georges
Simenon e Agatha Christie (o policial como espelho das taras sociais e
psicológicas da comunidade) e dos seus famosos inspectores da polícia Maigret e
Poirot. Trata-se de uma narrativa de intriga mistério, de pendor realista que, extrapolando
a ocorrência policial específica, intenta constituir-se como espelho histórico
da sociedade, afirmando a fidelidade ao real e a veracidade escrupulosa da
História, determinada a partir do ponto de vista dos documentos objectivos. No caso
de O Chalet das Cotovias, aborda uma história real a partir de fontes reais,
envolvendo-as numa trama narrativa exigente. Em O Chalet das Cotovias, trata-se
de retratar os grupos sociais emergentes do Estado Novo ao longo das décadas de
1930 e 40, bem como a especial comunidade de habitantes femininos do Chalet das
Cotovias em Sintra. Perfazendo as vezes de Maigret, desponta o chefe de polícia
Manuel do Rosário, tão heterodoxo nas investigações quanto o seu homólogo
francês.
Assim, por via das investigações
em torno do desaparecimento do advogado Luís Lencastre e do aparecimento do seu
corpo num descampado em Sintra, o autor, vocacionado por ofício e mestria para
a escrita do romance policial, como a sua obra romanesca o prova e este romance
o manifesta de um modo absoluto, explora tanto o universo de possibilidades de
resolução do mistério policial, segundo metodologias de investigação próprias
do período em questão, quanto a descrição de costumes sociais e de mentalidade psicológica
do momento histórico, tendo em conta, sobretudo, a aversão moral na época ao lesbícimo,
uma época puritana, fundada numa ética rural e católica fundamentalista, que
intenta morigerar o liberalismo e o positivismo morais da I República.
No caso da investigação policial,
o romance explora todas as possibilidades urdidas pela caracterização das
personagens e pelo desenvolvimentos dos factos, desde a possibilidade de
vingança política e de ciúme (Arnaldo Veiga, cuja mulher, Margarida, se tornara
amante de Luís Lencastre, e os seus dois serventuários, descritos como
autênticos “cães-polícia”) até à de ajuste de contas financeiro (o advogado
Costa Valente), passando pela hipótese de roubo e assassinato (os mendigos
“Matagatos” e “Zarolho”). A solução, só atingida no final do romance, constitui
um verdadeiro achado e corre o risco (justo e legítimo) de ficar na história do
policial português devido ao seu carácter insólito, ainda que perfeitamente
lógico.
No caso da segunda vertente, o de
se constituir como retrato da sociedade, João Céu e Silva escreveu no “QI” do
“Diário de Notícias” de 3 de Agosto de 2013, que O Chalet das Cotovias opera a
“perfeita reconstituição histórica de uma época fundacional do país que
sobrevive até hoje”, isto é, evidencia com rigor a formação da polícia política
(a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e a criação da Legião Militar,
mostrando que o modo como ambas as instituições arregimentam os seus servidores
têm mais a ver com interesses pessoais do que com a defesa de propósitos
ideológicos.
No Chalet das Cotovias, em
Sintra, sucedem-se reuniões de senhoras que não se limitam ao chá, à quermesse
ou bazar ou ao jogo de distracção. Frequentado por Florbela Espanca e Fernanda
de Castro, intelectual e mulher de António Ferro, o ideólogo de Oliveira
Salazar, as reuniões são animadas por Ju, dona do Chalet, que mantém relações
de sentimento carnal com Gabi, Zefa e Maria. A irmã de Luís Lencastre, Rosinha,
participa nestas soirées, e o advogado sai de Lisboa e dirige-se para o chalet,
em Sintra, onde desaparece.
Ju, avassalada por uma sociedade
puritana, fundada nos bons costumes da família burguesa, e por uma ideologia
salazarista nascente, baseada na tripla instituição moral purista de Deus,
Pátria e Família, fecha o chalet de Sintra e parte para o estrangeiro.
Sob a repressão política, a
censura intelectual e a pobreza social, Portugal dormirá o longo sono de 48
anos do Estado Novo, até ressuscitar no dia 25 de Abril de 1974 e as novas Jus
não precisarem de exilar-se para darem livre curso à sua sexualidade.
Luís Martins/Filomena Oliveira
O Chalet das Cotovias, Parsifal,
332 pp., 14,94 euros.»