Na Vertigem da Traição - Apresentação em Portimão

Minhas senhoras e meus senhores,
Na alegria da vossa amizade, agradeço a oportunidade que me é proporcionada pelo convite de Carlos Ademar, para a apresentação do seu livro “Na Vertigem da Traição”.
Feitos os agradecimentos, julgo ser possível afirmar que, entre a surpresa da obra e a satisfação de a ler, nasce a evidência de que esta imporá que a comunique com agrado, com entusiasmo e com paixão. Estamos perante um texto de quem se esforça por nos transmitir conhecimentos, de um modo fascinante, gerados pelo prazer do fluir fácil do pensamento nas palavras certas, expressivas e bem colocadas.
Por norma - corrijam-me, por favor, se estiver errado - fazer a apresentação de um livro é, por si só, uma tarefa árdua, na qual, com extrema facilidade, nos podemos perder em análises supérfluas, fora de contexto ou exíguas de conteúdo, prejudicando não só o livro mas também o autor, criando mesmo falsas imagens a quem lê.
Uma apresentação é uma espécie de contraponto ao exercício da criação literária, uma vez que, neste momento, estou a pedir-vos para que me ouçam, para que acreditem numa série de argumentos de que me sirvo para defender uma tese que não é a minha, que é a parte exterior, depois do intenso trabalho interior do autor.
Estamos aqui para ter algum prazer ou um sortido de sensações cujo desfecho possa ser agradável. Estou certo que, mesmo que haja pelo meio algum desânimo, chegaremos à noção de não termos dado o tempo como perdido ou mal empregue.
Nesta exposição, julgo ser de todo preferível contornar possíveis exames individualizados deste ou daquele capítulo e centrar a minha atenção no todo, tanto mais que não possuo as credenciais necessárias para uma apresentação mais analítica e aprofundada.
Também é verdade que não é meu propósito dispensar-vos de ler o livro. Tampouco vou fazer o resumo, ou ler, disfarçadamente, os seus andamentos, apesar dos títulos sugestivos. Apenas pretendo ser um catalisador da vossa curiosidade, enquanto leitores, como se de um aperitivo se tratasse.
Servem estas notas introdutórias para explicar a forma como desenvolvo os meus pontos de vista sobre a meritória desenvoltura literária que Carlos Ademar nos oferece neste seu mais recente trabalho.
Do autor, impõe-se que diga que não sou seu amigo nem admirador, o que, no plano da apresentação, me conforta imenso, porquanto, como bem sabemos, e, em particular, os políticos têm obrigação de o saber, “os admiradores corrompem”.
A despeito de minha insistência, não me permito, portanto, nenhuma postura idólatra da sua pessoa, procurando assumir uma desejável isenção nas considerações inscritas nesta difícil missão de lançar um olhar crítico sobre a sua escrita. Neste vislumbre não haverá, portanto, o reflexo de um qualquer incontrolável apelo íntimo. Digo isto porque a questão da avaliação está sempre a pairar sobre nós como uma ave silenciosa.
Mudando de registo, importa que diga que estou habituado a fingir, a inventar coisas e a trabalhar mais ao nível da imaginação do que do concreto, ou da alta definição em tempo real. Mas, aí, o autor ganha-me aos pontos. Também ele, na sua obra literária, gosta de especular, de introduzir tortuosidades nas superfícies, de modular vozes, de acertar tempos. Ler Carlos Ademar é sentir que ele vive para a escrita e que com ela vibra, fazendo-nos transportar para realidades tão impositivas que só não serão reais se tivermos falta de imaginação.
Com um título que é o que melhor define o teor da mensagem, surge-nos alguém que vemos como um hiper-realista literário, tal é o detalhe extremo das figuras e das situações que elas vivem. São figuras que, saltando do livro, ganham vida própria, permitindo flagrar a ambição de atingir as imagens na sua clareza objetiva. Por certo que a qualidade da narrativa não se dissocia da experiência do autor como inspetor da Polícia Judiciária permitindo-lhe, com perícia, alimentar o desenrolar da intriga, indispensável a uma história bem contada.
Há livros que a gente lê e outros que sorve. Este foi bem o caso de uma obra devorada. Percebe-se que o autor deve ter, de há muito, um sério problema que, talvez ele próprio, já tenha diagnosticado. Por certo que apanhou a doença da escrita e depois de a apanhar, de esta se ter tornado crónica, passou a exigir uma terapia contínua de leitura, observação e construção de personagens, ambientes e viagens compulsivas. Talvez que lhe seja necessário ir, subitamente, a determinados lugares ou estar sozinho a certas horas, para se encontrar a sós, na intimidade, com o tremendo apego da escrita viciante.
A sua escrita, saudavelmente doentia, tem uma profundidade que contém a virtude de nos transportar no espaço por queda num outro tempo. Ela é tão dinâmica, escorreita e fluída que parece surgir de um conjunto de vibrações ou influências dos lugares e da História. Ela procura, sobretudo, uma relação bem vincada com lugares fortes e com pessoas audazes que transpõem as barreiras do seu tempo para virem ao nosso encontro.
É uma escrita fabulosa que nos faz ouvir o tempo, o espaço e as vozes sem esforço algum. Nela, as experiências individuais ou coletivas são intermediárias desses mundos que foram inacreditavelmente possíveis e que, por inacreditável que nos pareça, poderão vir a sê-lo do novo.
Se a sua escrita pode ser intuída como uma linguagem de imagens, ela é também uma suspensão da realidade, uma alteração da gravidade das palavras, um adensamento do ar do tempo carregado de suspeição e de violência. Da descrição de uma sociedade deprimente, assolada por uma profusa esquizofrenia política, que tem como epicentro a traição, o autor consegue remeter-nos para cenas de amor, cuja leveza se pode tocar. É como se o nosso corpo emergisse um recife de coral, num lago artificial calmo, mesmo num dia de chuva. 
Através de uma narrativa que se quer em ligação com a vida, a sua escrita conduz-nos, absortos, ao êxtase do surfista que se deixa levar pelas ondas e nelas se perde. Tudo isso porque as palavras impositivas sobrevoam os dias, mesmo à tona dos compromissos quotidianos, fazendo-nos cair o nosso tempo de leitura no esquecimento.
Nestes anais que incorporam pessoas aos lugares, por algum tempo, as margens das páginas, tal como o silêncio, estabelecem limites certos para que o conto não se confunda com o que não lhe pertence.
Esta é uma história que procura resgatar a força e a perfídia do poder, mesmo do poder daqueles que, para defenderem a liberdade, traem e assassinam os que com eles visam defendê-la. Um poder que é prova provada de que o inferno existe, como existem as angústias de pensar naqueles que “não puderam fazer nada”, diante da prepotente máquina política de extorsão que, por décadas, se estabeleceu por estas bandas da Terra.
 Tudo se passa no seio de uma narrativa que prende completamente o leitor, desde a primeira página. Este título, “Na Vertigem da Traição”, constitui um retrato hiper-realista das nossas contradições como humanos, com as nossas fraquezas e virtudes, amores e desamores, frustrações e anseios. Edifica-se num texto perturbador, que nos ajuda a sermos hiperlúcidos. Mas também é, além do mais, a confirmação de Carlos Ademar como um mestre do romance histórico.
Nesta história, o tempo mede-se em medos. Medos, numa sociedade onde, se alguém conta a sua vida, está a calar quase tudo. Medos em que a agonia de viver prende a vida ao silêncio. Medos que nascem em qualquer lugar, como erva daninha por dentro de nós, no tempo certo para que os homens possam tremer e mudar.
Numa narrativa que termina numa fatia de inverno frio, encolhido num canto, sempre nos questionamos em que instante da queda da guilhotina passa o condenado a cadáver, em que momento a loucura social ganha a forma de Laranja Mecânica, como nesse filme de crime distópico, ou anti-utópico, de Stanley Kubrick.
Aqui, o crime despótico mergulha em águas desconhecidas, num romance baseado em factos reais, que nos remete para a história de Miguel Domingos, um ativista da revolta de 34, na Marinha Grande, que acompanhamos ao longo da sua vida, desde a passagem pela escola de formação, na Rússia de Estaline, à guerra civil em Espanha, passando pela ocupação alemã e a resistência francesa. Uma história perturbada pelo dever de lealdade ao internacionalismo que, ao tempo, se sobrepunha ao patriotismo e amarrava os comunistas ao pacto germano-soviético, assinado entre o camarada Estaline e Hitler, até ao momento em que cai em desgraça no diretório do partido comunista português e acaba assassinado numa mata em Sintra.
Aqui, a História mergulha-nos na incerteza da autoria de um crime hediondo, que fez afundar o ativismo na quietude da vida. Uma mudez ultrajante para indivíduos sequiosos de darem sentido à vida social, em luta contra outros cuja missão míope visava a supressão da utopia, sem que, contudo, a conseguissem aprisionar. Sim, porque onde existirem homens que sonham, há projetos utópicos que os acompanham.
E, assim, finalizo, como comecei, (re)dizendo o quanto constitui para mim um orgulho e um privilégio tremendos ter no meu currículo esta apresentação, ainda para mais estando esta escrita  longe do meu círculo habitual de conhecimento.
Bem-haja ao autor e muito obrigado a todos pela vossa entusiástica presença

                                                                                                                                                   José Figueiredo Santos


Fotos: o autor e o apresentador; o apresentador com Rita Domingues, a neta de Manuel Domingues, e por fim, os três com Ana Fazenda, a vereadora da Cultura da CM de Portimão, que organizou e patrocinou o evento.  

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