De «O Caso da Rua Direita» a «O Bairro»

Enquanto não chega «O Bairro», que já espreita, deixo-vos com o final do meu primeiro livro, de 2005, «O Caso da Rua Direita».
«Jorge encetou a viagem a caminho da Amadora. Ao descer a Conde de Redondo, parou no semáforo. Os carris dos eléctricos, que já por ali circularam, destacavam-se na noite pelo reluzir do aço no chão negro. A madrugada estava húmida e fresca, o trânsito era raro. Nas imediações não se via vivalma, à excepção, claro, dos poucos travestis que continuavam activos a tentar agradar aos clientes, que reduziam a velocidade para melhor apreciarem a mercadoria. O relógio do carro marcava as duas da manhã, mas Jorge respirava tranquilidade e sorria. Naquela noite sentia-se vencedor e tudo corria de feição. Não tinha pressa em chegar e por isso encostou à direita, reduziu a velocidade e deixou-se ir calmamente. Gozava o ar fresco da noite, mas também aquela serenidade insubstituível que só a consciência do dever cumprido propicia, seja ele qual for. O solo de saxofone da banda sonora do filme Blade Runner, tão ao gosto do condutor, que se ouvia a bom ouvir, encaixava-se no espírito tranquilamente vitorioso do momento. Jorge sorria feliz. A iluminação pública ia entrando e saindo do habitáculo escuro como flaches, à medida que os candeeiros iam sendo vencidos um a um, com uma cadência quase quartziana. Jorge continuava a sorrir. Era o seu prémio, o seu pequeno triunfo, já tivera outros igualmente pequenos mas sabia-lhe sempre bem. Só faltava o grande ecrã em frente, com os nomes dos actores de um policial a passarem em letras brancas no fundo escuro. Jorge sentia-se um pouco o herói que regressava a casa no fim do filme e, porque essa é uma experiência rara e saborosa, continuava a sorrir.»

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