Cá se fazem... ou o Pai Natal e os Guardiões do Tempo

Desenho da menina Beatriz Cortez,
com carta e tudo

A pedido de muitas famílias que, dizem-me, não conseguem encontrar o Jornal de Letras, aqui fica o meu conto de Natal, inserto no último número daquele periódico.

Cá se fazem...
Uma das principais atribuições dos guardiões do tempo é verificar se está tudo em ordem com o calendário universal. Não é frequente, mas já houve casos de sumiço de dias comuns sem nunca se ter percebido como ou porquê, cabendo então ao Conselho de Guardiões ajustar o calendário e submetê-lo aos homens. Por estes dias, contudo, sucedeu algo mais grave e inaudito. Na última reunião magna de Novembro, ao consultar os registos secretos, o guardião-mor constatou que faltava um dia no mês seguinte, e logo calhou que fosse o dia de Natal. A estupefacção pelo insólito deu lugar à indignação pelo atrevimento.

- Quem ousou mexer no meu calendário? Quem fez desaparecer o Natal, pondo em perigo os nossos lugares neste Conselho? – bradou ele, ao ritmo dos murros que desferia na mesa.

A atrapalhação da dúzia e meia de guardiões adjuntos foi visível e a todos tocou por igual. Temerosos, entreolharam-se sussurrando, procurando dar a entender que estavam tão surpreendidos, preocupados e indignados quanto o grande líder.

Perante a indefinição e à falta de qualquer esclarecimento convincente, o guardião-mor mandou chamar o detective Ampulha, um especialista em problemas de tempo perdido, prometendo-lhe uma recompensa por objectivos.

Ampulha usou toda a sua vasta experiência e saber, e foi ao encontro dos responsáveis directos e indirectos pela gestão do calendário. Fez interrogatórios, cruzou informação, espiou, extorquiu, vasculhou, escutou, perscrutou e, em meados de Dezembro apresentou as suas conclusões.

O Pai Natal estava determinado a não cumprir a sua tarefa anual e agiu, socorrendo-se de quem o podia ajudar nesse propósito. Na verdade, ao longo dos anos, viu goradas todas as promessas sistematicamente reiteradas. Estava cansado das más condições de trabalho que, ainda assim, pioravam todos os anos em nome da estafada contenção de despesas. Exasperava com a falta de estacionamento condigno quando tinha de fazer o trabalho sujo - e até de legalidade duvidosa - que consiste em entrar pelas chaminés nas casas alheias, usando, como qualquer meliante, o método do escalamento. Acalentava um sonho antigo: pedir licença e passar pela porta. Estava farto dos cheiros a fritos retardados; das mãos, cara, roupa, barba e cabelo, repletos de gordura enegrecida. Só ele sabe que por trás de cada Pai Natal reluzente que vemos nas ruas e centros comerciais com as crianças ao colo, existe trabalho duro, dedicação à causa e até sofrimento. Mas, claro, ele não podia ser frontal ao ponto de fazer referência a todo o vasto rol de exigências que engendrara. Tinha uma imagem a preservar. Aquele papel de amigo e defensor das crianças, que nunca se importou de desempenhar, seria para manter e até enaltecer; dele dependia o seu estatuto. E estava tão resoluto, que usou o seu prestígio para convencer o porteiro a deixá-lo entrar onde se guardam os segredos do tempo, o Cronografício. Já no interior, não lhe foi difícil aceder e alterar os registos centrais do calendário de modo a que, de 24 se galgasse para 26. Não haveria Natal, não haveria Pai Natal, alguém teria de reparar. Era a sua deixa. Assim, quando o processo se tornasse irreversível, envergaria o seu melhor fato felpudo, pentearia cuidadosamente as longas barbas brancas, e chamaria os jornalistas para uma conferência de imprensa. Exporia ao mundo as suas exigências relativamente aos direitos das crianças, particularmente aqueles cujo incumprimento tanto o afectava, como por exemplo, o de todas poderem dispor de casas grandes, quentes e asseadas.

Boas contas fez o Pai Natal, mas qual quê… Descoberta a patranha, o Conselho viu renovado o mandato; o guardião-mor respirou fundo e sorriu na sua tranquilidade, levando a respirar fundo e a sorrir todos os guardiões adjuntos. Quanto a Ampulha, viu ser criado para ele o excedentário cargo de magno-segurança, e como ficou feliz...

Já o Pai Natal sentiu na pele a mundana e bem pragmática tese da inexistência de insubstituíveis. De nada lhe valeu apregoar inocência aos quatro ventos, dizendo que tudo não passava de uma maquinação contra ele montada por forças ocultas. Acabou destituído por manifesta incompetência em artimanhas, ainda que na nota de despedimento se alegasse falta de perfil para a função, e, no último parágrafo, se recomendasse que a tarefa fosse entregue a uma central de distribuição global, seguindo o parecer da agência de comunicação contratada para o efeito.


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